domingo, 6 de novembro de 2016

Uma criança e a natureza, por Dr. Daniel Becker

Uma gota de chuva. Duas. Milhares. Água cai do céu!


Água cai do céu, gente. Como pode? Que maravilha. Água cai do céu.


Acabei de começar a andar, mas quando vejo água caindo do céu, eu danço. Eu faço aquilo que nasci pra fazer: brinco. Eu rio, me divirto. Me encanto, me fascino, entro quase em êxtase. Descubro, cresço, aprendo. Ou se você preferir: acrescento milhares de sinapses entre meus neurônios, tomo banhos de serotonina e dopamina, crio impressões positivas na minha memória afetiva; desenvolvo conexões que vão me permitir ser mais feliz e mais inteligente, mais em paz com a vida e com a natureza, enfim, uma pessoa melhor pra mim, pra meus pais e pro mundo, agora e mais tarde.


Se minha mãe não tivesse deixado eu sair na chuva, nada disso teria acontecido. Eu teria ficado meio inerte dentro de casa. Se minha mãe fosse legal o bastante pra brincar comigo em vez de me deixar tomando Discovery K*ds na veia, seria legal também. Eu também me desenvolveria, criaria sinapses bacanas, memórias afetivas.


Ah, mas ainda bem que ela me deixou brincar na chuva. Água cai do céu, gente! Faz cosquinha, molha, esfria a pele, aquece o coração. Como eu fui feliz. Como eu sou feliz!


Se minha mãe tivesse medo de eu me resfriar, nada disso… mas peraí. Chuva resfria? Ficar molhada? Não… o que causa resfriado é vírus! Frio pode até predispor, mas se não estiver uma creche cheia de outras crianças pra pegar um vírus, eu posso sair na chuva e não ficar gripada. Posso sair na chuva e ficar só fascinada. Feliz.
 
E olha, sabe o que? Se eu tivesse ficado resfriada, teria valido a pena. Um dia de resfriado pra cada sorriso de alegria, pra cada descoberta, pra cada grão de felicidade que ganhei nessa tarde de chuva.
 
 

sexta-feira, 29 de abril de 2016

A natureza em nós, A imaginação criadora e a intuição - Rita Mendonça


No dia 31/3, tive a oportunidade de assistir a uma apresentação superinspiradora de Gandhy Piorski, artista plástico e pesquisador das práticas da criança sobre o tema Criança e Natureza, que me é tão caro e é tema deste blog. O encontro foi na sede do Instituto Alana, em São Paulo, durante a segunda videoconferência da série Diálogos do Brincar, e que já está disponível online.
Suas palavras tocaram tanto os presentes e provocaram tantas questões – da audiência que acompanhava a conferência pela internet também – que resolvi aceitar o convite de Mônica Nunes, editora do Conexão Planeta, e rever esse encontro para produzir o post de hoje. O que destaco aqui é fruto de minhas reflexões.
Ele começou dizendo – tão poeticamente – que a criança ama sondar, desvendar os mistérios da natureza e que ela precisa disso pra se enraizar no universo da cultura em que vive.  A natureza é mistério, e disso as crianças entendem! Elas reconhecem o mistério das coisas vivas e brincam com elas para se aproximar, chegar perto do segredo, da essência das coisas.
“A natureza ama ocultar-se” diz o famoso aforismo de Hieráclito, filósofo que viveu na segunda metade do século VI a.C., lembrado por Piorski. A natureza está sempre emergindo, num fluxo permanente e contínuo. Ao se aproximar de um ponto, já se está no seguinte. Por isso, ela está sempre se escondendo, fazendo com que nunca seja possível apreendê-la por completo.
Ao brincar com a natureza, a criança entra em contato com as forças primordiais que sustentam a vida e nutrem esse inesgotável fluxo. E essa experiência do brincar permite que ela faça a conexão, que ela se transporte desde o universo natural de onde emergiu para o cultural onde nasceu. Assim é que ela vai entendendo o mundo.
Toda criança, ao nascer, é natureza pura. Se a intervenção cultural for delicada e suave, ela poderá nadar nesse mar de onde veio e ir gentilmente se misturando no ambiente humano. O mundo humano anda provisoriamente muito afastado dos outros seres vivos com os quais temos vivido há milhões de anos e sem os quais não teríamos chegado à forma atual, de como nós somos.
Nós somos a natureza e é na infância que o desenvolvimento biopsíquico pode se dar de forma conectada à fonte de vida ou, ao contrário, separada dela.
Sem o contato direto com a natureza como formular uma compreensão do mundo que seja elaborada e sofisticada como ele próprio? Temos alienado as nossas crianças da fonte de energia e de sentidos.
medo da natureza, tão comum na atualidade, vem do desconhecimento. Desconhecimento da experiência primordial de pertencimento. O conhecimento científico não dá conta de oferecer as respostas necessárias, seja no campo da ética, do senso comunitário ou da saúde psíquica, como diz Gandhy.
A natureza não é só o que esta lá fora, longe, nas florestas e nos campos. Ela está em nós e se revela no humano por meio da imaginação, por meio da intuição, a partir do nosso ambiente interior. Criar ambientes que favoreçam a interação com a natureza pra quem vive nas cidades inclui, não só o uso de materiais naturais, a presença de plantas, animais, água, terra etc, mas também lugares que ofereçam a possibilidade de recolhimento, de liberdade e estimulem a imaginação criadora.
Imagem: Desenho de Dora, minha filha
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Bióloga e socióloga, é autora dos livros “Como Cuidar da Natureza” e “Conservar e Criar”, sócia-diretora do Instituto Romã e consultora do projeto Criança e Natureza do Instituto Alana. Ministra cursos, vivências e palestras para aproximar as pessoas do ambiente natural. Acredita que a criança é a natureza se tornando humana e, por isso, precisa conviver com ela para seu desenvolvimento sadio e integral.